você já não me deve nada

deitada no chão, sentia a angústia me engolir viva, como se fosse um buraco negro que puxava para si com força qualquer faísca de bons sentimentos que ameaçam enevoar minha cabeça.

havia alguns meses que eu não o via pessoalmente. aliás, há algumas semanas não conversávamos como antes. as longas noites em claro, as mensagens incessantes e os inúmeros assuntos em comum deram espaço para conversas superficiais e um pisar-de-ovos que me parecia ridiculamente estranho. costumávamos ser melhores amigos e até o silêncio nos era confortável, mas tornou-se o que eu mais temia, tornou-se o mais clichê das obviedades humanas. o silêncio virou sinônimo de vazio.

observadora, eu assistia todos os movimentos e mudanças. o cabelo dele, às vezes por fazer, a barba comprida, o sorriso mais branco e mais tímido também, mesmo quando se esforçava com quantidades, imagino eu, de altas dosagens alcoólicas. por um tempo, eu resolvi permanecer exatamente no mesmo lugar que estava antes, já há alguns meses, e assisti todas suas decisões com uma esperança tão intrínseca e tão igualmente masoquista de que, em algum momento, ele iria me escolher. e incessantes vezes ele escolheu a si mesmo, enquanto eu continuava disponível com algo dentro do peito que eu, ainda, não sabia identificar ao certo o que era.

diversos episódios de raiva e tristeza que fui guardando comigo como sempre aprendi a fazer, como se fosse minha responsabilidade unicamente lidar com aquilo. inconscientemente, como se eu estivesse constantemente em uma prova de resistência em que eu era o torturador e também a vítima num paradoxo que deixa lacan orgulhoso toda sessão.

e quanto mais raiva e tristeza eu sentia, mais diferente ele ficava aos meus olhos. de repente ficou bobo, fútil, estranho. como pode assim do nada deixar de conhecer alguém? quão rápido uma pessoa que ficou ali por tantos anos pode sair?

e eu já tinha passado por aquilo antes. foi ela, a garota que era o desejo dos meus amigos, a quem guardei e protegi todos os segredos e me deixou sozinha quando perdi minha vó. foi ela, minha amiga que jurou estar ao meu lado em todos os momentos e que faltou no meu aniversário quando meu pai estava na uti para aliviar o estresse com outros amigos. tiveram outros também até que, por fim, foi ele, que depois do furacão de dois anos isolado e quase-mortes, que sempre dizia preferir o equilíbrio, escolheu pelo desequilíbrio para estar todos os dias baladas cheias.


então, o que estava diferente dessa vez? por que eu continuava com a sensação frustrante de continuar em desvantagem?

"mas existe diferença entre tristeza e mágoa". uma frase tão simples quanto beber água, mas uma vez com sede, parece o mais divino dos líquidos.

o problema da mágoa é que você a carrega sozinha. é possível partilhar e compreender outros sentimentos em conjunto, mas a mágoa é muito pessoal. e ela fica ali sendo remoída, remexida, revirada e alimentada toda vez que algo vem a tona. e a mágoa vira rancor.

pensei que daria para aguentar mais essa e guardar junto com todas as outras, mas de alguma coisa tem que servir aprender sobre lixos e gavetas bagunçadas. de algo há de servir ouvir sobre lacan, jung e freud. já não eram meus aqueles cacarecos e, por mais que eu havia tentado devolvê-los, em todos os momentos foi me dito que ele também não queria aquele lixo, mas porque ele não os jogava fora? por que ainda continuava em minha mãos?

o nó preso na garganta me impediu de gritar tantas vezes, mas tenho conseguido desatar. e dessa vez, pela primeira vez, eu reuni todos os lixos e não me dei ao trabalho de etiquetá-los, colocá-los em sacolas e dar pronto para somente colocar no lixo. dessa vez eu apenas os reuni, de forma bastante educada, mas eu os entreguei para o dono. agradeci pelo empréstimo, mas lixo é lixo, e eu não precisava guardá-lo comigo.

quando o fiz, pela primeira vez disse que não os queria de volta e que ele precisaria lidar com eles. que eu não merecia toda aquela sujeira, mas que ela tinha que ser limpa por alguém e aquele alguém, não era eu, não mais. e ele pegou o lixo de volta com uma certa relutância. disse "desculpa, mas é que eu nunca quis sujar nada de propósito". e eu sabia disso, mas ainda que não se suje nada de propósito, ainda sujou e não sou eu que devo limpar apenas porque não foi de propósito.

exausta da mesma discussão sobre a sujeira, expliquei tudo isso e ele pegou o lixo de volta. dessa vez, pela primeira vez, manteve-se apenas no substantivo. "desculpa". já não me importava a conjunção e nem nunca deveria ter me importado. tudo que precisa às vezes é se ater ao simples, à palavra única, à sujeira. eu não precisava do mas. se foi de propósito ou não, não me importava, me importava lidar apenas com a minha sujeira.

e a exclusão da conjunção me trouxe um alívio tão imediato que senti que o buraco negro deu lugar a uma supernova.
e finalmente, fico feliz em te imaginar feliz porque finalmente acho que merece e que não me deve nada. tudo foi pago na desculpa, mas sem o mas.

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